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Bolinha-de-sabão e Dente de Leão

  • Foto do escritor: Bê Sant'Anna
    Bê Sant'Anna
  • 24 de fev.
  • 3 min de leitura

Ontem não me deitei com minha filha mais nova, quando foi dormir. Temos esse hábito.

Como eu tive uma reunião online, despedi-me dela na frente da tela, na frente dos 53 peregrinos que participavam do encontro. Ela me abraçou com seu pijaminha de plush, menina peluche que quer crescer. Ontem cresceu mais um pouco.


Maria soprando bolinhas-de-sabão
Maria soprando bolinhas-de-sabão

Ao deitar, cada um escolhe e relata 5 coisas que tem para agradecer.


Primeiro, Maria agradeceu a vida do Daniel Mansur (note, ela tem 5 anos). Talvez se lembrando da oração da manhã, em que pedi, entre outras coisas, pela família do Daniel Mansur, meu irmão de coração - fotógrafo que me ensinou a olhar o mundo com equilíbrio estético. Daniel partiu há uma semana e estamos lidando com o luto - que tem esse nome porque é mesmo preciso lutar, ainda que de forma pacífica, paciente, contida, usando a estratégia Wu-Wei, a da "não-ação", fundamento da filosofia oriental. Fato é que Plotino, neo-platônico, faria bem menos sentido se eu não tivesse entendido na prática, por meio dos ensinamentos do Dani, um dos pilares das virtudes que apregoava o filósofo - sobre o Bem, o Bom, o Belo. Foi o Daniel que me abriu os olhos sobre o equilíbrio estético, o ponto de fuga, as cores, sombras, luzes, enquadramentos, linguagens visuais. A Virtude do Belo em linguagem fotográfica. Para um artista-fotógrafo que se especializou, entre outras coisas, em fazer fotos de obras de arte e depois fez de suas fotos obras de arte, isso era pão, ferramenta, motor. Um flash que imprime para sempre.


Depois, Maria agradeceu a vida da Tia Yara, que ontem também fez a passagem, faltando menos de um mês para completar os 100 anos de vida. Ela, que foi mãe sem ser, avó sem ser, tia sendo e sem ser, professora (de matemática), companheira, confidente, conselheira e o que mais você puder pensar, pra quem participa desse mundo por 100 longos e vividos anos. Digo longos, porque ela não os desperdiçou. Não desistiu de viver antes da hora como muitos fazem. Pena que só vivi com ela metade disso, a bem dizer. Também foi um flash.


Tia Yara, Nyara ou Nya, para os íntimos, era assim: - Tia, apronta que vou passar aí pra você ir comigo ao supermercado. (Êba! - dizia ela.) Ou - Tia, apronta aí que preciso de ajuda para descarregar um caminhão de cimento (Êba! - dizia ela.) - Tia, vamos pra Matinha (sítio dos meus pais, em São Sebastião das Águas Claras)? (Êba!) Talvez você já tenha entendido. A chamada "pau-pra-toda-obra" e disposição para fazer o bem, não importando a quem. E se importando também. Foi, aliás, o primeiro exemplo de voluntariado que tive em minha vida. A "Colmeia" e suas histórias...


Tia Yara quem foi no nascimento da minha primeira filha, quando meu advogado me proibiu de ir, e fui caminhar para macerar (ou merecer?) a tristeza e a dor da minha primeira separação com minha filha.


Era uma mulher positiva que me ensinou, dentre muitas outras coisas, a ter senso de realidade. Talvez tenha sido ela, inclusive, a primeira a me falar sobre resiliência, doutora que era no tema.


Hoje, do outro lado do oceano, enquanto acontece seu funeral, tenho a sorte de ter um amigo que me ligou dizendo que vai para me representar. Um dos tantos colegas que a conheceram e a admiravam - Tia Yara sempre fez parte de nossas vidas, de nossas comemorações, das lutas, das perdas, e das vitórias. Do comezinho e do complexo, do particular e do todo.


Tia Yara Sudoku, Tia Yara palavra-cruzada, Tia Yara pesca, Tia Yara baralho, Tia Yara quando você quiser, já estou pronta pra ir, Tia Yara tricot, Tia Yara solteirona, Tia Yara que me amava como neto, Tia Yara que me amava como filho, Tia Yara que chamava minha irmã de "Futriquinha". Minha Nya - a que só eu conheci.


Depois de agradecer a vida do Daniel Mansur e da Tia Yara, Maria também agradeceu por ter soprado dente-de-leão no dia de ontem. E por ter soprado bolinhas-de-sabão.


Não me recordo qual a quinta coisa; talvez Ana tenha comentado comigo, talvez não. Mas me dou por satisfeito. Quão linda é a vida, quando temos a sabedoria de agradecer seus sopros.


Enquanto eu respirar, vou ver as lentes do Daniel no sopro das bolinhas-de-sabão. Enquanto estiver vivo, vou compreender a entrega de Tia Yara nos arquênios e pappus que se desprendem e voam-para-quedas, dos dentes-de-leão. Enquanto for sopro de alguém, vou fazer o que puder, para me tornar um agradecimento criança, um flash de luz, um brilho no olhar.

Obrigado, Dani, obrigado Minha Nya.

 
 
 

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